quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Quanto mais um vampiro silencia de si, mais deixa de ser si mesmo. Porém, deixe que se esconda por trás de uma máscara e, então, ele nem ao menos será um bom mentiroso – de si.


A ordem viera diretamente. E, por mais que para um Lasombra aceitar ordens fosse sempre difícil, o caso era diferente, uma vez que misturava um prazer inconcebível. Canon o sabia.

Sabia também que não havia melhor vampiro do Sabá para fazer o serviço, afinal, mesmo quando humano, Canon era tido como alguém cuja especialidade era trabalhar em equipe, a bem dizer, fazer a equipe trabalhar por seus objetivos. Seus atributos, pois, já vampiro, eram de grande utilidade. Quando se pensava em um ataque em massa, nada melhor do que Canon para designar o grupo e os meios para realizar a tarefa.

Assim, concebia que a nova tarefa designada pelo líder do Sabá pudesse ser apenas mais uma dentre tantas. Mas não o era realmente, pois não se tratava de uma banalidade – matar humanos apenas. O fato tinha um alcance maior e Canon sabia que faria as vezes de porta-voz do Sabá. A mensagem, por sua vez, todos discerniam, tinha endereço pontual, a fraqueza dos vampiros, Stratton e sua frágil Máscara.

Decorria de tal tarefa sua estranha felicidade dos últimos tempos, felicidade que, para ele, significava crueldade e das mais precisas e preciosas. Desta forma, com o poder que lhe tinham concedido, juntou um grupo de epítomes do Sabá (alguns por meio do medo, outros pela força empregada para o medo, mas todos, outrossim, pelo prazer de ferir a bem-comportada Camarilla).

Recebeu a notícia, enquanto preparava o projeto, de que Marek Jaroszýnski atacara um ponto da cidade e a sua aparição levara toda a choldraboldra de ovelhas mascaradas a seguir até aquele ponto. O carnaval se fizera. Agora era o momento de dar um pouco de seriedade àquela noite de mascarados..., e não havia melhor face do que a própria sombra a ser registrada como fotografia nas ruas de Bennington. O alvo seria o metrô, porque ali estava o que havia de mais repugnante na humanidade. A vida humana já era em si um revés, uma inutilidade, e aquele ambiente só corroborava isto. Centenas de homens e mulheres debatendo-se, em turbamulta, para prosseguir com a mesma rotina diária de ir a um destino que alimenta de esperanças suas vidas tolas. Milhares de seres que se ajoelham, implorando mais um dia de existência, que acompanham desprezíveis estatísticas para saber se a média de idade de morte aumentou de 60 para 65 anos; ou, ainda, que vão às academias no sonho de permanecer, no corpo, o frescor de uma jovialidade que posteriormente não será mais que uma pele franzina, os ossos ruídos, e sequer qualquer benefício de uma fé salvatória, além das baratas a devorar cada minúsculo órgão...

Isto era a grande civilização? Isto era a Humanidade?

Tolice. Naquela aglomeração, em que o toque behaviorista do sino era o suficiente para tocá-los, o desígnio da humanidade mostrava-se latente: ser gado.
Para isto existiam, semoventes com o fim único de servir de alimento. E nesse sentido, o Sabá era felino: não desprezava o brincar com a comida, bem, ao menos não naquela ocasião especialíssima.

Sem a presença de Justicares ou quaisquer uma daquelas instituições estúpidas da Camarilla para tentar evitar o ataque, a carnificina teria lugar no mundo, se é que um tal ato simples como este, de assassinar humanos, deveria merecer qualquer menção honrosa.

Os humanos desciam as escadas para o mundo subterrâneo dos metrôs e esperavam o rumo de seus destinos. Hilário seria, se não fosse somenos. Um deles destacava-se aos olhos dos vampiros e, se não fosse por sua mediocridade ébria, teria talvez algum valor como um dos Sabá, uma vez que sua presença causava o caos no ambiente, atitude que, não fosse o caráter pachorreiro do bêbado, teria algum valor.

Canon, seguidos pelos seus, passou então entre os humanos, pela escada, abriu um leve sorriso para o bêbado e fez com que a sombra do próprio bêbado se movesse, em pequenos movimentos oscilatórios, um vulto andante, que causou um pavor inconcebível naquele indivíduo, o que ocasionou, por sua vez, nos outros, uma enorme irritação, acontecimento que acrescentou mais sarcasmo ainda ao olhar do Lasombra, que pensava em como a presença de um vampiro é sempre superior, o bêbado, aquele pequeno cão dócil a latir e ser menosprezado; ele, porém, vampiro, a raiva inserida no canil de domesticados, e agora o caos.

Era até divertido.

Mas, enfastiava, afinal, tudo o que é humano uma hora cansa. Foi quando, Belceck, neófito ainda, esbarrou em uma mulher de cabelos arruinados, tingidos de vermelho, forte alusão ao sangue... suficiente para despertar a primeira faísca de Fome. A moça vestia-se ainda de uma forma estranha, as roupas importadas demais, os ares afetados demais, mas quiçá a deselegância trouxesse, ocultamente, um sortilégio de sangue?...

Canon, entretanto, vendo o desejo de Belceck, pediu a ele que esperasse alguns segundos. Não que temesse a aparição de alguma ovelha da Camarilla, pelo contrário, sabia que o ato deveria vir como uma surpresa para Stratton, mas não ter ninguém para mostrar sua superioridade até entristecia, pois tirar a vida de humanos nunca seria humilhar, significava, na verdade, levar o prato à mesa e mastigar, banal e tedioso. O fato de esperar, contudo, vinha do antegozo de imaginar a cara de Stratton no momento em que recebesse a notícia da chacina. Para alguém do Sabá, humanos nos jornais traduziam um cardápio em um restaurante qualquer, mas para a Camarilla o sentido se transformava em outro, em medo de priscas eras, humanos ensandecidos à caça, exterminando.
Humanos à caça... e riu-se... irônico, olhando para o rebanho pastando.

Lá iam eles, os humanos, para dentro do metrô, uma armadilha sem que se precisasse montá-la. Corriam, ratos, para seu queijo fétido e envenenado, entretanto, não era o queijo que os mataria.

O metrô abarrotado de pessoas, os olhos desconsolados... as portas fecharam-se.
Eles, esmagados. Dois, sentados, iniciavam quem sabe um romance.

O metrô começou a mover-se. O calor era insuportável, o cheiro, indescritível, os ânimos, inconsoláveis.

E tudo piorou. A luz acabou, sobrando apenas as luzes de emergência. Um suspiro geral subiu, o calor se mostrou mais fortemente, o cheiro tornou-se insuportável, os ânimos agitaram-se.

- Porra, tá todo mundo fodido aqui e você não pára de se mexer pra tentar sair, seu Mané?!

- Que é, quer apanhar?

Foi quando surgiu o ringue de galos. Dois passageiros disputando o espaço, Bestas poderiam ser, se não fossem bestas. Mais distante, uma enxundiosa mulher e suas sacolas oprimindo os outros passageiros com sua enorme carcaça adiposa. Inútil dizer o estrago. Mais distante ainda, um casal angustiado com o parado do metrô e agora naquele quase sem luzes; ao redor deles, a moça ruiva, sua cara de desolação; outros humanos, e outros humanos...

Digam-me, eles não mereciam todos morrer?

As pequenas luzes vermelhas refletiam-se na face dos humanos, salientando ainda mais o rosto e os esgares de inconformação, preço que se paga por estar vivo, por enquanto...

As sombras começaram a se locomover, vagarosas, involucrando os vidros, tornando o ambiente uma grande massa negra de horror. Em meio a elas, como que em pequenos buracos sombrios de luz vermelha, um líquido movente adentrava por entre as frinchas das portas.

Aquilo causou um pavor inexpugnável em todos as presas do metrô, a reação única era de se debaterem uns nos outros buscando saídas possíveis, socos, empurrões, pontapés, tudo era plausível para a sobrevivência,que não lhes seria concedida...

As sombras se tornaram mais densas, pareciam corpos vivos, os líquidos, por sua vez, fizeram um movimento em ascensão, corporificando-se, e a imagem não era das mais belas, para humanos: para estes, na verdade, era o inconcebível.

Sequer uma pessoa entendia o que se passava, aliás, nem o podiam, a inconsciência agia por elas agora, todos os instintos de sobrevivência sendo extirpados dos corpos. Essa era a força do Sabá e se para os Lasombra as trevas eram o insumo do que é propriamente vampiresco, para os humanos era a vida o próprio néctar do caos.

A escuridão apossou-se totalmente das paredes, apenas se podia ver o leve facho de luz vermelha que ressaltava o aspecto grotesco daqueles líquidos, naquele instante já constituídos em forma de algo semelhante a bípedes, porque a imagem não cabia num quadro que pudesse ser afirmado como humano. Após, de dentro daquelas enormes massas tisnadas, inúmeras faces iam se moldando, todas elas muito lívidas, macérrimas, com uma expressão mórbida perfazendo os traços dos rostos, exaltando uma espécie de sinistro massacrante, capaz de transformar qualquer furioso instinto de sobrevivência em total pavor entrevado.

Os humanos, então, não mais se continham, lágrimas saíam de olhos; alguns tentavam se esconder por debaixo de qualquer coisa que houvesse, mas nada resultaria em salvação. Orações desesperadas e nada de deus. Gritos e nenhum consolo. Tentativas vãs de resistência e somente mais inutilidades aspergidas no vazio. Esse era o fado humano, ser um grito no silêncio das sombras.

E as sombras, de um golpe, vieram avassaladoras, espalhando as pessoas por todos os cantos, fazendo-as se entrechocarem, ao mesmo tempo que as lançavam pelas paredes negras que, posteriormente ao momento do toque, tornavam-se como que tentáculos escuros que amarravam pernas e braços, imobilizando e ferindo vagarosamente, pois o pior ainda estaria por vir.

Veio. A figura monstruosa dos Tzimisce tomou suas formas definitivas. Monstruosa sim, para o gado, que sempre vivera no cabresto da cercania, na ingenuidade de nunca sentir, um dia sequer, em sua volta, a mão hábil de seu senhor levando-o ao matadouro.

Lentamente, os tzimisces se aproximavam daqueles humanos, enquanto as trevas intensificavam cada vez mais a pressão insuportável sobre os corpos; Belceck, neófito Tzimisce, incontido, começou a brincar com o rosto de uma idosa, apenas para ver se ainda valia a pena tentar transformar aquela face rugosa em alguma coisa nobre como um possível rosto de vampiro. Falhou, como já era esperado, por ser apenas uma Criança da noite, porém um Tzimisce nunca desiste em seus projetos arquitetônicos... decidiu então dar-lhe uma face que pudesse ser ao menos ser fúnebre : arrastando as rugas da velha, foi rasgando-as veementemente, até que os músculos, envolvidos por elas, começassem a seguir o movimento rastejante da pele, revelando assim, toda a "beleza" da essência humana.

Enquanto isso, as sombras acolhiam desmaternalmente algumas pessoas, estirando-as contra as barras de ferro do metrô, forçando estridentemente seus músculos, suas entranhas e ossos, até o limite que nem o grito pudesse exprimir, as ligações das articulações se esticando até que os corpos simplesmente se decompusessem, tornando-se apenas uma matéria amorfa epidérmica.

Aaron e Janaya, o casal, tentaram se esconder debaixo de um banco, pura tolice.
A mão de Aaron segurava o isqueiro tremendo. Se tivesse um cigarro, pensando aquele ser seu último momento, quem sabe, uma coragem ainda viesse para que ele pudesse acendê-lo e tragá-lo lentamente antes de morrer? Bem, não foi o caso. Uma sombra puxou uma de suas pernas levando-o até uma das paredes enegrecidas. Iniciou, pois, a comprimir seu corpo contra ela. No entanto, meio sem querer, Aaron riscou o rolo do isqueiro e uma pequena chama acendeu-se, fato que fez a sombra, presto, afastar-se... Um segundo e um minúsculo orifício de luz indicou que a barreira de sombra havia se deslocado. Aaron, tornou seus olhos atrás de si...estava encostado na porta do metrô, sobre o vidro. O pensamento de relance tornou-se, então, ação indistinta, quebrou o vidro com um chute capoeirístico, saltou do metrô e correu pelo trilho, com esperanças de que a escuridão acompanhante dos trilhos não se tratasse, na verdade, de mais sombras.

A sorte de uns...


Janaya, no entanto, caíra nas umbras de Canon, e este apertou-lhe o corpo rigidamente até que em seus brancos restassem apenas hematomas. Observou-a. Ela tinha um rosto bonito – para humanas. Contudo, não cabia a ele julgar a beleza. Jogou-a então a um Tzimisce:

- Que seja...

O Tzimisce aproximou-se dela e começou a deformá-la. Desvirtuou cada parcela do rosto com uma exímia habilidade. Pequenas porções das peles das coxas usou para aplicar nas bochechas. Costurou as sobrancelhas até os olhos. Repuxou-lhe as orelhas. No entanto, fez de maneira com que ela pudesse ter, mesmo que desfigurada, um perfil. Qual ironia naquele rosto, humanamente deformado e agora apresentando outro cariz, outra significação. Na face em que outrora residia uma bela mulher, os traços agora eram uma afronta. A face feminina tornada, então, vampiresca e cópia perfeita (ainda que deformada) da face de Stratton, príncipe da Camarilla... Janaya transformara-se na mensagem do Sabá ao Príncipe e, por isto, foi mantida viva, não por condescendência com humanos, mas por virulência, contra Stratton.

Assim, Canon soube que era hora de acabar com aquele divertimento e todas as sombras começaram a agir realmente com fins mortíferos. Não era diferente com os tzimisces que começaram a desfigurar inúmeras pessoas, arrancando os braços de alguns, destripando outros e, em seguida, recosturando as tripas e os braços dos respectivos corpos em donos diferentes, mas em lugares diferentes, criando novas criaturas de aparência mais genuína.

Os Lasombra, por sua vez, fustigavam e atravessavam corpos como se as sombras se apresentassem verdadeiramente como setas impiedosas, que iam minuciosamente perfurando corpos, transpassando-os, como se, zombeteiramente, costurassem-nos até que o sangue fosse expelido, sangue que logo era sugado pelas trevas, que a cada gota, tornavam-se mais densas, até um frenesi de crueldade que destruísse a tudo.

Depois disso, nada mais restava. Os humanos, antes nada, agora, o que sobrava - de nada. As sombras foram então diminuindo, se afastando. Os corpos monstruosos foram se liquefazendo. De chofre, tanto trevas quanto líquidos deslizaram-se sobre o silêncio do túnel até a escuridão total.

A luz retornara. O metrô anteriormente parado, voltara a funcionar. Deveria agora, após tanto tempo, seguir rumo à outra estação. Seguiu. Calmamente. Ignorou até mesmo o corpo de qualquer bebum que pudesse se situar abaixo de seus trilhos... Passou a primeira parte do túnel, pela segunda, continuou sua travessia por uma curva, quieto, lúcido e tranqüilamente. Finalmente, chegou à outra estação, vinte minutos atrasado. As pessoas que o esperavam até estranharam – não havia ninguém...

As portas se abriram. O povo quis entrar, achando que tudo estaria maravilhoso, na calmaria de um dia sem multidões para amassá-las.

Quanto não se espantaram ao ver ali, em meio a um conjunto de desarticulações monstruosas e vermelhos escorrentes, uma mocinha franzina, encolhida num canto, o rosto desfigurado e chorando, chorando como se entrega, sem mascaramentos,

Os presentes mais VERDADEIROS.

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outro post colocado em vampire.

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