sábado, 5 de maio de 2012

Ano do Bobo da Corte, Missiva "qual o número mesmo?" - temporada de caça.

"Há uma fina linha entre genialidade e loucura. Eu apaguei essa linha." (Oscar Levant)
----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- A marquesa saiu às cinco horas, mas sua ampulheta estava uma hora adiantada já que era horário de inverno. Ela, a marquesa, estava atrasada , deixe-me ver - um dois três quarto cinco séculos pra frente de sua era. Esperava a condescendência do partido, ao menos um pouco, afinal, quem se engaja deve dar a vida ao partido e não pode se atrasar por um sequer segundo para tomar um cafezinho – aliás, nada mais danoso do que um “cafezinho” para manter os olhos bem abertos e continuar no ofício: “bebida capitalista por excelência” e este foi o motivo porque se queimou as várias sacas no brasil em 1929, lembrando que o Brasil chegou a exportar 15. 115.000 sacas de café (imagine isso caindo na cabeça de alguém, ou pior, imagine o estômago do cidadão? ). Onde eu estava mesmo? - Porra, você estava enchendo o saco… para de protestar e narra isso direito! - Tá bom, tá bom… Bom, então a marquesa chegou. Era um castelo antigo, transformado agora em um arranha-céu de luxo, segundo as especificações gerais de sua patente, número WO09876544323. A descrição detalhada segue abaixo: No anexo 1, temos uma visão aérea-helicoidal do tijolo 1, acoplado em sentido transversal à coluna de base da plataforma de sustentação 2, esta que , por sua vez, exerce pressão sobre a coluna 45, projetada na barra de apoio 32, disposta sob o aro 35 e o pino de indução cerâmica 62, colocado de forma que o seu cabeçote fique numa posição de encontro à banana 46, sobreposta de maneira que um palhaço escorregue (palhaço não que dá processo) e ainda caia no chão sobre a esteira 90 que é acoplada ao aparelho nadegal do cidadão 23 (o que evidencia o caráter homofóbico 23 da viga 73), que se localiza sobre o eixo distinto do emérito candidato à deputado estadual 45, mesclado à glândula paroidal da nischtzia obligatara, ameba específica para a produção da turmalina branca 23, piroeletrica e piziofóbica, tendo como produto um ângulo pirovitante 23 de acutangulosidade morbid 17, perfeito para tratar do ressecamento das suas mãos. Feita a descrição, passemos adiante. A marquesa subiu a escada e apareceu finalmente num grande salão que, por economia de texto (pois pensamos nas questões ambientais, caso você imprima) e, de saco, não decreveremos. Ali, ou seja, no lugar que se imagine, encontravam-se dezenas de pessoas aplumadas, decoradas com o que havia de mais esbelto da frança do século 16. Não que isto fizesse lá grande diferença, no fundo, as pessoas daquele local eram apenas nobres, mais esnobes do que nobres, porém, mantendo ainda um certo requinte alfarrábico. Mas, na verdade, talvez eles fossem mesmo o que hoje se diria de “uns equisitões”: a aparência louçã de todos, mesclada ao ritual fanático de procedimentos, isto, era mais luxuriante ainda. Ou seja, eles eram praticamente seres ostracizados em nosso tempo, uma vez que como tudo hoje é uma merda, e eles ostentavam ares de fashion-week ancestral, não se adequavam bem a nossa sociedade moderna. Mas queriam seus direitos, afinal, quem é que não quer? E era por isto que a reunião havia sido estabelecida, para que pudessem, naquela ocasião, retomar um antigo palácio ou casarão, ultrajantemente retirado de seus domínios por uma plebe rude e burguesinha de meia tigela... De repente um rapaz, vindo pressurosamente de dentro do salão onde se passava a festa e, tropicando e pigarreando e depois arcando a coluna numa posição de “sim, sou submisso”, achegou-se até os pés da marquesa, quase que os lustrando com um beijo eloquentemente molhado. Levantou-se após, tirou do bolso um lençol e o girou, em uma leveza de bandeiras desbragadas, proferindo - em bom tom - em seguida: - A madame marquesa deu seu primeiro passo para adentrar o salão! Dando berrida a isto, ocasionou-se o fato de outro cavalheiro perceber o vagaroso movimento da saia da marquesa, ao que irrompeu: - A saia da marquesa balançou-se! Mais ao fundo, um outro cavalheiro, este mais idoso, não vendo nada, mas sabendo que “regras são regras” e a etiqueta demanda certo costume, após não conseguir divisar o que se passava e sabendo que era sua vez de falar algo, exasperado, não mais se controlando, e um tanto pavoneando-se acusou a outra pessoa de seu próprio ato: - Seja lá quem for... Flatulou!!! Isso causou um certo alvoroço, não que este se destacasse, pois, como se sabe, a educação manda não demonstrar o sentimento de asco em público. Assim, todos sorriram, colocando suavemente seus lenços por sobre o nariz no intuito de escondê-lo, pacificando, desta forma, a situação ou, ao menos, tentando. Nesse ínterim, aproveitando que as pessoas se distraíam com seus lenços , a madame entrou, antes que tivesse que esperar que todos os homens do recinto ladainhassem algo a cada movimento que ela viesse a empregar até que alcançasse, por fim, sua poltrona. Bem, ela chegou no calor da discussão e, veja bem, com a questão do aquecimento global vigendo ardolorosamente em nosso tempo, e estes senhores, todos engomados, com suas roupinhas escandalosamente apertadas, aqueles inúmeros panos e babados, a peruquinha caprichando ainda mais na canicule pessoal de cada um, enfim, aquilo era o inferno declarado e estarrecido. Em dado momento, o líder da reunião (afinal, aqui ninguém é igual, e a hierarquia é uma coisa a se respeitar sempre num partido) bradou: - Vejam bem, creio que deveríamos retomar a posse daquele nosso antigo casarão, uma vez que ele nos foi expoliado pelas mãos daquela ardilosa e infame família... E com isto, elevando seu salto e batendo no chão, continuou: - Onde isto já foi visto? Nós, do Partido dos Nobres Falidos e Falecidos, passarmos por tal baixeza, expondo nosso sangue ao vexoso exercício de nos proternar diante dessa aberração! Ora, meus caros, deveríamos nos aprochegar agora daquele recinto e difamar aqueles que outrora nos açoitaram com a promiscuidade de seus corações caudalosos de assalto! A isto, Roufos de Bengala levantou-se, de um assalto: - E digo mais, o assalto está cada vez maior, minha pobre carteira, vejam só, que humilhoso dizê-lo, Ó minha carteira deslavada, vejam, esta, esta me foi roubada antes de que eu pudesse sentir o ar adentrando minhas narinas. Ó ladrões, ó pivetes enviesados, estes que, ao furtarem minha carteira, não apenas unicamente furtaram-na, mas também engoliram em seus ventres cheios de cobiça e, nada de comida, toda o meu valor, a minha dignidade! Ó , e que farei agora com estas mãos vazias? Ó insidioso destino, ó vida destituída, ó revez azarado, ó puta que o pariu.... E antes que o ó se tornasse mais uma tautologia, veio a frente do palco Bonsoir Julies para representar a peça do dia “ Brenos e os nobres pobres”, peça baseada na cultura clássica, apesar de seu registro não constar em nenhuma biblioteca. (Bom, mas o texto é meu e daí me permito a licença poética de dizê-lo, entendeu?). A peça, finalmente, teve seu início: - Ó Brenos, então vossa mãe se matou? - Sim... - E qual o motivo de tão amaxofóbico passar desta para a melhor (ou pior, se ela foi como estava). - Ela estava fatigada de ser vossa. - mas, ele nunca dantes fora minha... - Não, vossa burreza, não é a isto que me refiro. Não vês que me refiro a sua dupla personalidade, ao fato de ela se sentir partida como uma torta de flandres... - Ela, pois, se achava com o aparelho digestório em ruínas... ó triste destino, partida ao meio, no meio de seu âmago... agora entendo aqueles meses em que tomei posse do jorro imaculado de suas entranhas, ó molescência fúnebre... se eu pudesse tê-la tomado em minhas mãos... quem sabe eu a salvaria? - salvar –la – ia em vosso peito? - em qual deles seria de preferência? - Opa, deixe-me ver... creio que este é o mais apropriado. - Seu mulequoso, então tendes à direita... - Sim, perdoe-me, a curva é sempre mais para um lado. - Entendo. Não obstante, ainda não pude conceber o motivo da falecência de vossa mãe piosa. - Ora, nem eu. E quem poderia um dia importar-se com aquela horrorosa idosa dolorosa? Agora, veja que o é tenso, o propenso intenso de meu senso é destro dentro denso... - Destro? - Só de fim de semana. - então, não presto em destro canhestro morrerás... E todos se suicidaram no final. Os aplausos estouraram por toda a sala. Cavalheiros e damas incontinham suas lágrimas pungentes. A sofisticação, o decoro daquele espetáculo. Quem é que não entenderia a cena? Tudo estava organizado de maneira perfeita. Aquela peça, sua voluptuosidade, encheu de estro a todos os que estavam ali. Batendo os pés, numa berra e entre olas, o desejo de todos, entrementes, era o de seguir logo ao casarão e dominá-lo... E foi o que fizeram. As ruas viram passar, em procissão, a turbamulta. Nobres galochando com seus sapatos altos, atravessando os asfaltos, indo até o casarão para retomá-lo. Triunfantes e sem motivo. E, assim, surgiu, sem motivo, Jean Jacques Sans-Cervell, repórter, solteiro, desocupado e especialista em furos sem razão de ser. Sem saber, como sempre, Jean Jacques acompanhava os nobres , acho que até o cemitério (porque eu não lembro se a casa do rapaz que morreu é afastada do cemitério ou não, enfim...). Ele não sabia, é claro, que naquele dia ele discursaria exatamente naquele cemitério, junto a outras sumidades, sendo que uma das sumidades sumira de fato, mas deixava sua cova pra marcar presença. Fingindo-se, então, de nobre e no meio daquela defuntagem( afinal, que nobreza estaria viva no século 21?), jean acompanhou o galope infrene daqueles rumo ao cemitério. Ele estava atrasado. Pra variar. E sendo que isto nunca havia acontecido. As pessoas o esperavam. E onde já se viu, estar atrasado em enterro de tão solene entidade? E como estar atrasado para um enterro em que nem se foi convidado, mas se é tido como um dos discursantes? Sim, a vida é cheia dessas coisas. Para que ninguém ficasse ofendido, jean dizia que o trânsito estava difícil naqueles dias. Sabe como é a poluição tem aumentado o indíce de carros na rua e estamos no ano do peru, o que faz com que as almas fiquem alvoroçadas e tal... Alvoroçadas... e os convidados do enterro viram... era ingente, mas era gente ou algo que o valhesse . Lá vinham. Com presença garantida: defuntos defumados ( o cheiro confirmava). Eram diversos e estavam furiosos. Soaram trombetas e vieram trotando. Queriam destruir tudo, o que ficasse viraria pó, se não obtivessem o casarão de volta. A maioria dos convidados aturdida. Houve até um que se destacou pela inteligência e se escondeu em uma cova (mais tarde descobriu-se que ele morreu: de burrice). Os outros, porém , que ficaram, acharam o negócio cabuloso. E como não achariam – naquele exato momento os aristocratas se aproximavam do túmulo, buscando respostas: - Ora, queremos saber quem se atreve a dizer que é o senhor de nossas propriedades! E alguém gritou ao fundo: - Eu sou. Ao que obteve como resposta: - Quem és? - Eu sou. E se dirigiram rumo à voz e nada de alguém: - onde estás? - eu nunca estou. Eu sou. - És? E quem és? - Eu sou o sou. - mas se és o sou então és o sou, não pode ser apenas “sou”. - De fato, sabe que eu nunca havia pensado nisso? - Tudo bem, mas e nossas propriedades? - Homens de pequena fé, vosso corações almejam propriedades tão pequenas quanto vossa fé. Eu, porém vos digo, que se me seguirem Eu vos darei o galardão da plenitude, a total onisciência da fartura... - Estamos fartos da fartura! Queremos apenas os nossos bens! Outra voz irrompeu, mais a frente desta vez: - Mas esse negócio de bens não surge com a ascensão da burguesia e tal? - Estás querendo dizer que não merecemos aquilo que é nosso? - Não, não. Eu só queria participar da história. Bom, já vou indo... Um cavalo vermelho chamado Bom-a-parte passa e morde a cabeça do nobre que estava reclamando. Um dos convidados, contudo, delata: - O dono de tudo o que é de vocês jaz aqui. – e pulou em cima do caixão como se pulasse sobre uma cama d’ água. - E quem é este inescropuloso? Vamos ressuscitá-lo para que ele nos entregue nossa posse. A primeira voz, que se calara por um instante, retorna: - Só eu posso dar e tirar a vida... - Ah, cala a boca! Outro convidado, por sua vez, dirige-se aos nobres e responde: - Olha só, o morto é Andre Müller. - Como é que é? - Isso mesmo que você ouviu : Jacob Bocaj. - Não posso crer... - Creia sim, este que está na cova é exatamente ele, Alice Becila. - Mas isto não é nome de dama? - Não, Virgilio Dante nunca foi nome de dama, é de autor de varões. - Como? - Isto mesmo, isto que você ouviu : Neil Gailman, autor de quadrinhos. - Nossa... que cara estranho. - Cara? Quem te disse que é homem? - Mas o senhor disse que não era dama? - Claro, é damas: o nome é Diana Lilith. - Diana, tal qual da deusa? - Desde quando David Sandlor é nome de deus? - Ora, estás passando a perna em nossas razões? - Não, não vocês estão sem razão, olha, o nome é, em verdade, Christoper Cornell. - Corneille, como o dramaturgo? - Não, não, Frederico Frederic, como o paronomásico. - Chega, Chega, qual é o nome dele? - Jean Jacques... - É ele? Mas este senhor estava conosco... - Não, Jean Jacques chegou... vou conferir o nome dele. Jean Jacques era amigo pessoal do falecido. - Jean Jacques, como era o nome do falecido mesmo? - Não sei. - Mas o senhor era amigo pessoal dele. - Não, nunca o fui. - Como assim? - Sou amigo do defunto, não do falecido. - E como é o nome dele, morto? - Não sei. - Como não? - Nós nos chamamos por apelido. - E qual seria? - Não sei se devo dizê-lo. Ele não me autorizou. - Ora, diga ou nós o expropriaremos de sua vida. - Beleza. - Como assim? - Olha, não me importo não. - Como assim, não gosta de estar vivo? - Gosto. - Então? - Ah, sei lá. É só o autor me colocar de novo na história e ponto. - Está seguro disso? - Bom, eu não fiz nenhum mal a ele. Ele deve me querer por aqui. - Ora, não entendo ainda o motivo para continuarmos aqui a tecer conversas com pessoas que não nos trazem nada. - E o que é que você queria? Acha mesmo que encontrará alguma coisa? Viver é desistir de procurar a agulha no palheiro e achá-la, de repente, no próprio pé. - O que queres dizer com isto? - Não quero dizer nada. Uma vez que se exprime algo, já nos afastamos do mesmo. Ou seja, se eu disser cemitério, já devo estar na Conchinchina. Xiii... já fui... - Ei, pare de enrolar... onde estão nossas posses. - Não posso falar com vocês, estou na Conchinchina e vocês continuam no cemitério...Xiii... devo estar em Marte agora... - Ah, nos poupe. Tu continuas aqui, vejo-te. - Isso é o que você pensa, deve estar delirando... E, de chofre, Sans-cervell chuta um dos nobres. - Por que me chutaste? - Só pra conferir se minha teoria estava certa. - Que teoria? - De que personagens são onipresentes. - Mas, eu não sou um personagem... - No fundo, todos somos... - Estás dizendo que a vida é um romance ou conto ou algo do tipo. Então, deus é um escritor. - Não, não estou dizendo isso. - O que dizes, então? - Não digo nada. Eu sou um segredo. - Segredo? - é, só que desvendado e sem solução. - Como assim? - Fácil, você pode até saber um segredo de alguém, mas vai ser sempre mentira. - E por quê? - Porque ninguém é que pensa ,o que diz, ou que faz, e nem o que pensa que diz que faz, assim, todos os segredos são mentiras. - Mas que teorias complicadas... - É que vocês ainda estão no século 16, esperem até chegar Kant... Nesse instante, um dos nobres desmaia ao ouvir a palavra Kant. Outra vai acudi-lo, ele está morto, porém. Algumas pessoas são muito sensíveis. Amaranta, que estava quieta até então e cansada de toda aquela tragicomédia, cara ao século 16 ( e não me refiro aqui às obras de arte), finalmente enche de ar os pulmões, até que sua voz possa sair como uma trombeta e vocifera: - Eu sou a dona do legado. O defunto não era nada, só está tapeando vocês, mesmo depois de morto. - Ah... então nós iremos matar-te... Alguém, porém, chamara a polícia. E ela veio, lúcida, para trazer o iluminismo para aquele obscurantismo de cena. E por mais que nem de leve parecesse, aquilo não era uma revolução francesa. -----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------À Ananda.

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