quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Símilio.

.......................................................A Fábio Alarcon.



Símilio apaixonara-se por seu espelho. Pensara talvez que pudesse um dia adentrá-lo, permanecer naquele espaço vivo, agindo no cerne do recinto vítreo. No intuito de realizar sua quimera, contemplava-se todo dia, até que sua pele pudesse se reformular, desfazendo-se de materialidade e transformando-se numa espécie de contorno, abrigo ou cela da voluptuosidade pictórica das cores. Mas o fato não ocorria. Toda sua vontade de projeção se petrificava no límite do liame entre o tato e o visível. Foi quando um dia,ao abrir uma janela, uma luz sussurrou-se, alastrando-se de veemente por todo o seu quarto e tocando de um enorme brilho o espelho. Uma certa cintilação abrasou todo aquele espaço e tornou-se um clarão... Símilio teve de tapar brevemente os olhos, uma era se passava. Abriu-os novamente, a luz ainda intensa em sua sede de esclarecer tudo, de trazer à tona toda a película da minúcia, aquela iluminação dilatou-lhe a pupila. Luzes no espelho. Finalmente ele concebeu. Não, de forma alguma, não havia distância entre aquele que concebia ser "ele-mesmo" e o outro que via. Entendeu, enfim, que tudo o que estava ali e que era tido como seu reflexo, na verdade, era apenas sua visão das coisas. O universo inteiro, portanto, por ser externo, de fato, era só a incomensurabilidade de seu próprio ser.
Símilio se envaideceu e se estarreceu: "então tudo sou eu... se me detenho nas coisas, se a tenho como objeto, elas são , de fato, apenas uma projeção minha? E que sou eu, assim, senão um rio que destila a água pro mundo e no final percebe que a água só correu pelo mesmo rio sempre?" E ficou absorto com a possibilidade de si mesmo como infinito, seu eu algo sempre projétil, sempre mais longe, afastando-se, evoluindo-se , criando todos os espaços, as coisas, os seres... tudo se organizava e evoluía porque Símilio existia e era o deus feitor e, por isso mesmo, Símilio também acompanhava o ritmo desta evolução, esperando o ponto em que finalmente a sua própria transcendência cíclica levasse o universo ao além do indizível...

Inopinadamente o espelho se quebrou.

Símilio, com efeito, não havia notado, mas suas pálpebras sequer haviam aberto durante toda sua digressão. Aquilo, toda aquela idéia, parecia, percebendo melhor, apenas uma espécie de delírio. Não, o pensamento de que a amplidão pudesse ser ele, aquilo fora apenas um instante perdido num átimo de introspecção. Era como se ele tivesse acordado de um sonho em que a significação de cada particularidade, de cada detalhe, pudesse ser explicada como sendo efeito de um narcisismo. Símilio assustou consigo. Outra era passada? Como podia ter feito aquilo? Como podia ter acreditado um milésimo sequer em si mesmo e em sua mente confusa ou perdida? Observou os estilhaços do espelho no chão. não conseguia em nenhum deles ver nem um milimetro de sua própria face. Era como se as coisas quisessem negá-lo, como se elas quisessem mostrar a indiferençca que tinham em relação a ele, era como se elas quisessem castigá-lo por ter aniquilado sua existência. Todas estavam cansadas de serem os objetos apropriados, as matérias-primas, e quisessem revoltar-se mostrando a Símilio como ele é quem poderia ser objeto delas, ou quem sabe, uma entidade em disputa pelo espaço no universo.

Símilio agora teria de se aceitar como mais alguma coisa ou mais qualquer. o que fosse. E suas dúvidas naquele momento pareciam vomitá-lo de si mesmo, não mais como alguém que pudesse compreender ou sequer controlar o que se passava internamente em seu corpo, contudo, todo seu organismo se manifestava de maneira impossível e o descontrole prostava-o a sua própria tentativa de buscar razões. Seus dentes cresciam e ele só podia coça-los, seus pés empelavam mais e mais e ele só podia sentir os pêlos saindo sem atinar motivos ou razões... Pensava-se um animal, mas ao se olhar, seu olhar ainda tentava fugazmente organizar toda a complexidade das formas, seu olhar tentava moralizar tudo, pintar tudo de uma tinta inteligível, mas tudo o que ele tentasse, redundava num mal estar, numa sensação de incapacidade de compreender profunda... ele sentia que não havia mais nada por dentro de si, seu intestino sequer tinha existido, os outros orgãos então, haviam sido um dia um mito, não, ele só podia............... e nem isso...

Um escuridão vinda de dentro dos olhos de Símilio cancelou sua capacidade de entendimento. O quarto tornou-se a sombra sem a lembrança do claro. E não se sabe se isto deve-se a ele conceber a si mesmo como o impossível de ver, ou se o quarto é que se tornara todo não-luz, sem o intervir da ação humana. Mas, de fato, quem poderia testemunhar, quem buscaria achar uma iluminação, quem saberia suscitar a silhueta do abismo ou o furo de uma bala perdida no meio de uma nuvem? Ele observou a face do espelho. E não viu um reflexo ao menos, só o rosto sem-imagem do espelho. Isso percebera. Antes de não conseguir mais nem perceber, nem pensar, nem se mover. nem.

Símilio fosse só um espelho sem corpo ou imagem.

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