quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Apenas isto.

ele ficou esperando na porta, enquanto o mármore era montado. A arquitetura do corpo feita. Apaguei tudo com aquela areia branca que suspende o nome de face ao rosto. o lábio saltou-se, com suas bordas sensuais fingidas. eu era uma peça. Uma escultura acabadamente lapidada. meus braços, esticava-os, os músculos molescentes. Dissimulava o que seria um abraço de entrega, um corpo de entrega. Buscava o vestido, verde, azul, vermelho - pensava na possibilade ilusória e sugestiva das cores - ele me veria? ele me veria, debaixo das cortinas? enxergaria o apartamento, a bagunça, aquela poeira quase fugidia, escapando por debaixo do tapete de veludo levemente rasgado?

o ranger da porta uníssono ao ranger dos dentes.

o amor uniu-se a raiva.

Eu o queria, mas como deleitá-lo com os cabelos mal arrajados, sujos, as mãos oleosas, sem creme, com o cheiro de gordura contido nelas, as pernas em pêlos ásperos e a face recém dormida, amarfanhada, presa ainda no desalinhado formal do sonho?

e me questionava, para quê agir assim; para que doar-me com o compromisso de ser outra, a quem sabe boneca aceita, com seus esgares perfeitos, seus trejeitos angulosos, e a pretensa bunda sempre arrumada, sempre modelada, simplesmente porque ele não pode me ver, não pode me conhecer, não pode enxergar as dores, os pequenos estupros - de sapatos, de maquiagens, de preocupações...

e pra que estas preocupações... pra que ele? O mundo parece se medir em dois, dupla, casal, e com a falsa promessa de que tudo o que é divisível vem em par. Vem e vai e tudo é sem par. O mundo em si, é ímpar.

e será que não é isso? pra gostar do mundo realmente não seria melhor esquecer este apenas homem ? Para poder gostar de um pássaro ou mesmo daquela samabaia ali, deveria fugi-lo. Mas agora ele já está ali, perene, rígido,com o seu queixo sobre as mãos, intencionado, esperando, esperando que eu me arrume, promessa de uma possível satisfação pessoal dele... e onde estou nisso tudo?

Ele é a nunca humanidade. e é a partir dele que devo me saber, eu, que nem mesmo sei o que significa a humanidade?; e o que é pois a falta dela ou ela inalcançável?
E o que devo dizer a ele? mandá-lo embora, confirmação de meu cetiscismo? Ou devo deixá-lo entrar, ir ao banheiro, tomar um copo d'água e ver os seus olhos sedentos...
seus olhos de mendigo no último dia de vida... e ainda, seus olhos vadios de cachaça.

Nunca. e me deixar agora neste inútil jogo? O que pode ser ele, sozinho comigo no escuro? E eu , o batom na cara, manchando, o suor no corpo, o cansaço, o que mais? o amor e a tristeza... e o abandono de não querer um dono, de querer ser eu mesma, quem mesmo? eu mesma, seja lá quem for, mas sem ele, sem a preparação de mim para ele ou para o que ele possa me dar... eu, nas minhas rugas sadias, nas minhas gorduras, na minha tão desvairadas banhas e desleixos estéticos. Eu, sem os cabides, fora do armário, da gaveta, jogada no chão, carcomida, com os fios velhos soltos, eu blusa desbotada, no meio do jogo de cama desalinhado e desconexo das ordens de estar acordada.

mas e esta insegurança? esta insegurança de não ser aceita? a rejeição, a negação, a solidão, todos estes sufixos pesados ecoando na minha cabeça... estou entre ele entrar e eu jogá-lo pela janela... se eu aceitasse simplesmente a queda, eu , irresoluta, sozinha, sem os olhos dele pra me dizer "linda", eu, porca, em arrotos e peidos, eu,eu, eu colocasse pra fora toda a presença enclausurada de homem de dentro das minhas veias... seria assim mulher? ele morto. eu, alguém?

Não sei. mas ele quer se sentar. e eu o observo. admiro seu nariz, a pele do rosto esverdeadiça de barba, o cabelo meio penteado, meio desalinhado e os olhos subversivos... como ele reagiria se eu mostrasse que essa aparência de meia desaventura que há nos seus trajes simples, uma calça, uma camisa, é tão minha quanto dele? se eu mostrasse a ele que uso o vestido, mas que no fundo estou nua, numa nudez imperceptível ao seus olhos tão diretamente direcionados ao amor e a todo o futuro que podíamos ter juntos? e que futuro seria esse, eu , mãe, filhos? eu, ele, uma mesma casa... eu , ele, e ter que vê-lo ir ao banho, sua barba sendo feita, sua escova na boca e sua pose de rei e meu olhar em sua urina?

Hoje nem senti o ontem ainda. Sua vinda, a aproximação, sua conversa, minha bebida. Sim, ele às vezes parecia idiota, meio bobo, meio fajuto. Mas eu o queria assim, imperfeito, tolo, inútil... queria-o como a fraqueza, como um vazio busca um outro... ele tinha a reação da minha desesperança, ele era o desesperado, o desconfiado, o cético, era como a ponta do meu cigarro - apagada, sem acreditar que o fogo que consome, seja levado para além de sua fumaça e de sua extinção esvoaçante de cinza.

naquele dia dormimos juntos, sem sexo. Apesar de querermos muito. Mas talvez tenha sido o álcool... sei lá, sem justificativas. Não sei porque às vezes quero ficar me justificando das coisas... é esta coisa deste sentimento de culpa...chega, chega de convento... aconteceu. simplesmente.

mas e como dizer agora que ele entra. que quer ele? a mim, meu corpo, uma palavra, uma conversa, uma relação, apenas uma bebida e uma tragada e ir embora?

não...ah... não estou pronta pra isso.

Está sobre o sofá. e fuma. já me sinto um cigarro morto. ele brinca, me deixa livre. falo palavrões... isso o atiça. ele pensa que sou alguém a mais, pensa talvez que eu não seja puritana. Bem, não sou. Mas não sei se o quero com a ilusão que ele queira. Bem, eu me iludo com ele... o que se passa em sua cabeça quando ele me olha. Ele me quer, ele me vê... ou será que toscamente só vê aquilo que quero que veja?

Quem sabe. prefiro nem pensar nisso. Mas não paro... tudo gira em volta dele, mas no fundo, gira é mesmo por dentro de mim. Sou como um ventilador que jorra vento pela frente e verso.

Ah... que se foda. Pra que pensar tanto nisso? vou me aceitar isolada... sozinha no mundo? O que é o mundo senão isto - um conjunto de solidões que se passam e dizem bom dia? E ainda bem. Sozinha é algo ainda lucidamente insandecido.

Conversamos. horas e horas. Pronto, ele já sabe de tudo. Minha infância, minha meninice, minha face adulta. Mulher. eu o quero e estou ao ponto de escurraçá-lo. Não, ele não foi mal ou bem educado. Não, ele não foi detestável ou alegre. Ele foi o que foi e este é o problema... ele não pode ser meu niilismo. Ele não pôde significar nem mesmo o nada pelo qual transpasso como água. Ele não teve o sono sereno de que tudo é insignificante e, ainda, vivo e intenso como um sonho. Ele foi só aquilo, um homem diante de uma mulher. A realidade, um relez.

Creio que podíamos os dois estarmos mortos agora. Ele me olha, olha a a borda da janela - ambas ferrugens. eu vejo seu rosto pálido... converso com um defunto. Se eu o convidasse para um suicídio, ele toparia?

franzino,frágil... mas, para além disso, eu queria devorá-lo com a suposta correspondência de quando uma mulher beija uma mulher. No entanto, ele não saberia dar resposta a esta tentativa. Eu pularia, ele ficaria lá, contemplando - teso e sem palavras. ele levaria como brincadeira. Não entenderia. É uma pena.

E quem gostaria de se suicidar? Enfim, nem isso valeria.

Ele vai até a janela, batuca os dedos. Joga um pouco da cinza no vão do vidro. a cidade no vidro acendida pelo cigarro. sigo-o. meus olhos na cidade, sua chama em meu corpo. A escuridão no estopim das luzes... a cidade é concreta, áspera e dura, e é tão bela... que são as estrelas diante da carcomidesas da cidade? Lá se vai uma estrela derruída pela descrença...e ótimo. O fogo rechaça a cidade, queima os prédios, deixa tudo em cinzas, o vidro aumenta a iluminação de tudo. meus olhos nítidos, os olhos dele estacados e famintos. O mundo em derrocada. Eu o observei, o fogo consumia, ele me puxou os olhos pela íris, não éramos mais mulher, homem, éramos disso nada.

E nos consumimos. destroços de vidros no chão. bebidas sobre tapetes, litros decadentes apodrecendo junto ao cheiro de frutas fétidas sobre os azulejos gastos. os cigarros e seus fogos perto das peles, perto dos pelos, machucando e dizimando. calmos... violentos. loucos.

e o sol saiu. lento. em compassos ritmicos de luz. Já acordava de novo e ele pedia licença para ir embora. Calamo-nos. Fora aquilo, fora agora. E ele partiu. Não havia mais interrogações. Se aquilo fosse amor, o amor seria então só aquilo. Um pássaro negro deitou no meio da janela, quase morto, acariciei seu bico e ele me mordeu. sangrei. Sem dor, fui buscar o gelo. apenas isto.

Um comentário:

  1. Como eu disse, Buarqueando. Lembrei de uma música do Guinga e do Aldir Blanc chamada Valsa pra Leila, conhece?

    Conversaremos sobre o texto, daí eu canto pra você. Huahuahua.

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